Publicado em: 13 de setembro de 2025
Enquanto a capital inglesa usa restrições para priorizar ônibus e sustentabilidade, a capital paulista recorre ao rodízio suspenso e fortalece a dependência do automóvel
ALEXANDRE PELEGI
A paralisação da maior parte das linhas do metrô londrino nesta semana trouxe de volta um tema que divide opiniões, mas que em Londres já tem resposta consolidada: mesmo em cenários extremos, a prefeitura e a Transport for London (TfL) não suspendem os mecanismos de restrição ao automóvel. O Congestion Charge, pedágio urbano aplicado na área central, e a ULEZ (Ultra Low Emission Zone), taxa ambiental que cobre praticamente toda a cidade para veículos mais poluentes, continuaram a vigorar normalmente.
Histórico da política londrina
Desde 2003, quando o Congestion Charge foi criado sob a gestão de Ken Livingstone, Londres consolidou um modelo de regulação que desincentiva o uso do carro no centro da cidade. O objetivo declarado: reduzir congestionamentos e melhorar a qualidade do ar. Em 2008, veio a primeira versão de taxa ambiental, ampliada anos depois até se transformar na atual ULEZ, em vigor 24 horas por dia, sete dias por semana.
A coerência é visível: não há suspensão em greves, nem em protestos, nem em períodos de instabilidade. A única exceção são os dias de Natal. A mensagem política é clara: essas medidas não são paliativas, mas estruturais, parte de uma visão de cidade que prioriza o transporte coletivo, a caminhada e a bicicleta.
Mesmo em greves anteriores (2010, 2014 e 2015), a TfL foi categórica em manter a cobrança. A lógica é simples: liberar carros em massa para compensar a falta do metrô seria agravar o problema, transformando ruas em estacionamentos e penalizando justamente os ônibus — que, em situações de paralisação, se tornam ainda mais essenciais.
São Paulo: caminho inverso
Na capital paulista, quando há greve do metrô, a prática recorrente é suspender o rodízio de veículos, abrindo espaço para todos os carros circularem. A medida, pensada como paliativa, acaba saturando as vias e reforçando a centralidade do automóvel.
O rodízio, que já nasceu como solução temporária nos anos 1990, acabou se consolidando como política permanente, mas sem a mesma lógica ambiental ou de eficiência de Londres. Na capital britânica, os pedágios urbanos não apenas desincentivam o uso do carro, como também geram receita direta para o financiamento do transporte coletivo e de políticas de mobilidade sustentável, fortalecendo o transporte por ônibus e a infraestrutura para pedestres e ciclistas.
Esse contraste revela a diferença de prioridades: enquanto Londres mantém coerência com suas metas de mobilidade e meio ambiente, São Paulo ainda recorre ao carro como “solução de emergência”, mesmo que isso comprometa a eficiência do transporte coletivo.
De forma irônica, no próximo dia 22 de setembro, a Prefeitura de São Paulo divulgará ações em apoio ao Dia Mundial Sem Carro. Desde 2005, a capital promove atividades simbólicas nesta data, mas, no cotidiano, segue recorrendo à flexibilização do rodízio e ao reforço da centralidade do automóvel em momentos de crise. Qual a mensagem que passa?
Carro como fetiche nacional
O Brasil construiu ao longo das últimas décadas uma relação de obsessão com o automóvel. Mais do que meio de transporte, o carro se tornou símbolo de status, liberdade individual e ascensão social. Essa mentalidade moldou o desenho das cidades e a implementação de políticas públicas, relegando o transporte coletivo a segundo plano.
A chegada da indústria automobilística nos anos 1950 e o crédito farto das décadas seguintes consolidaram o automóvel como sonho de consumo. Publicidade, incentivos fiscais e programas de governo reforçaram a ideia de que ter um carro é sinônimo de sucesso pessoal. O resultado é um modelo urbano baseado na fluidez dos veículos individuais, com ruas e avenidas projetadas para eles, enquanto ônibus, metrôs e trens ficaram em desvantagem.
Essa tara pelo carro bloqueia medidas essenciais para salvar vidas. Reduzir a velocidade em grandes avenidas, política adotada em várias cidades do mundo, enfrenta resistência porque “atrapalha o motorista”. O mesmo ocorre quando se discute corredores ou faixas exclusivas para ônibus: qualquer espaço retirado do carro gera reação imediata, mesmo que um coletivo transporte dezenas de pessoas contra um único passageiro em um automóvel.
Arrecadação e aplicação legal dos pedágios de Londres
O que é a MTS?
A Mayor’s Transport Strategy (MTS) é o plano estratégico de mobilidade urbana elaborado pelo prefeito de Londres. Ele define metas e prioridades de longo prazo para o sistema de transporte, como:
- Reduzir o uso do carro e aumentar a participação do transporte público, da caminhada e do ciclismo;
- Melhorar a qualidade do ar e combater as mudanças climáticas;
- Eliminar mortes no trânsito (Visão Zero);
- Garantir acessibilidade e inclusão.
Por lei, toda receita líquida do Congestion Charge e da ULEZ só pode ser aplicada em ações que apoiem esses objetivos da MTS.
Lições possíveis
O que Londres mostra, e São Paulo ainda reluta em aprender, é que políticas públicas só funcionam quando mantêm coerência. O Congestion Charge e a ULEZ não são vistos como castigos momentâneos, mas como parte de um pacto social que coloca o coletivo acima do individual. Ao não abrir exceções nem em greves, a capital britânica garante credibilidade ao seu modelo.
Já em São Paulo, a cada suspensão do rodízio, a mensagem transmitida é a de que o carro continua sendo o recurso mais confiável em situações de crise. Essa ambiguidade fragiliza qualquer esforço posterior de convencimento sobre a necessidade de reduzir emissões, reorganizar o espaço viário ou investir em transporte público de qualidade.
Se o Brasil quiser avançar em políticas consistentes de mobilidade, será preciso enfrentar tanto a dimensão política quanto a cultural do tema. Isso significa coragem para manter medidas impopulares em momentos de pressão, mas também capacidade de comunicar à população que essas políticas não são punitivas, e sim instrumentos de segurança, saúde e eficiência urbana.
Projetos como os Corredores Verdes de São Paulo, que prometem unir sustentabilidade e prioridade ao transporte coletivo, apontam caminhos. Mas, sem romper com a centralidade simbólica do carro, esses avanços sempre serão vistos como exceção, não regra.
A lição londrina é direta: só há transformação real quando a política resiste às emergências do dia a dia.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes