Publicado em: 13 de dezembro de 2025

Enquanto operadores europeus consolidam o ônibus elétrico a bateria como padrão, países asiáticos usam compras concentradas e política industrial para empurrar o hidrogênio no transporte coletivo
ALEXANDRE PELEGI
Caminhos distintos para a transição energética
A leitura das notícias publicadas recentemente na Europa e na Ásia mostra que a transição energética no transporte coletivo urbano segue caminhos distintos em cada continente. Levantamento do Diário do Transporte a partir de reportagens divulgadas ao longo de dezembro de 2025 indica que, enquanto cidades europeias aprofundam a eletrificação por bateria com compras em escala e investimentos estruturais, países asiáticos — especialmente a China — recorrem a grandes contratos e à ação direta do Estado para testar a viabilidade do ônibus a hidrogênio em operações reais.
Ônibus elétrico vira padrão nas políticas europeias
Na Europa, o ônibus elétrico a bateria deixou de ser tratado como projeto-piloto e passou a ocupar o centro das políticas de renovação de frota. Na Bélgica, a operadora pública De Lijn confirmou a compra de 268 ônibus elétricos da BYD, todos do tipo urbano padrão, com cerca de 12 metros de comprimento e piso totalmente baixo, voltados à operação metropolitana e regional.
Os veículos contam com propulsão 100% elétrica e baterias de fosfato de ferro-lítio (LFP), tecnologia escolhida por priorizar segurança térmica e maior vida útil. A configuração foi pensada para recarga predominantemente noturna nas garagens, reduzindo a necessidade de infraestrutura complexa de recarga rápida em via pública e se adequando ao perfil operacional da De Lijn, com rotinas previsíveis e retorno diário aos depósitos.
Contratos-quadro como ferramenta de escala
A encomenda integra o plano da operadora de eliminar gradualmente os ônibus a diesel até 2035 e se apoia em um instrumento que vem sendo decisivo para acelerar a eletrificação na Europa: os contratos-quadro.
De forma resumida, são contratos que funcionam como acordos prévios que definem preços, especificações técnicas e condições gerais, mas não obrigam a compra imediata de todo o volume previsto. Eles permitem que operadores públicos adquiram os veículos aos poucos, conforme orçamento e necessidade, sem lançar uma nova licitação a cada compra. O modelo garante escala, flexibilidade e previsibilidade, reduzindo custos e riscos tanto para o poder público quanto para a indústria.
Infraestrutura passa a ser protagonista
Na Alemanha, o avanço da eletrificação aparece com força fora do veículo em si. Em Berlim, a BVG avançou em dezembro na implantação de um novo depósito projetado exclusivamente para ônibus elétricos, com infraestrutura dedicada de recarga e manutenção. O projeto evidencia que a transição energética exige mudanças estruturais profundas — garagens, rede elétrica e logística operacional — e não apenas a substituição do tipo de ônibus.
Hidrogênio na Europa: cautela, engenharia e operação real
Enquanto o ônibus elétrico a bateria avança com maior segurança operacional, o hidrogênio segue presente na agenda europeia com cautela. No Reino Unido, essa prudência ganhou novo peso após um ônibus urbano movido a célula a combustível ser completamente destruído por um incêndio durante operação regular, no sul da Inglaterra.
Serviços de emergência responderam a um incêndio em um ônibus movido a hidrogênio operado pela Metrobus no sul da Inglaterra
O veículo integrava a frota da operadora Metrobus, que atua em serviços urbanos e intermunicipais nas regiões de Surrey e Sussex. O incêndio ocorreu com o ônibus em circulação, levando o motorista a interromper a viagem e a evacuar o veículo. Não houve feridos, e todos os passageiros conseguiram sair em segurança antes que o fogo se alastrasse e consumisse totalmente o ônibus.
Segundo a imprensa especializada europeia, o episódio levou à abertura de investigação técnica para apurar as causas do incêndio, incluindo análises do sistema de armazenamento de hidrogênio, da célula a combustível, dos componentes elétricos auxiliares e dos protocolos de desligamento de emergência. Até a divulgação das reportagens, não havia confirmação oficial sobre a origem do problema, nem indicação de falha estrutural generalizada da tecnologia.
Como medida preventiva, a operadora informou que a frota a hidrogênio passou por verificações adicionais, procedimento considerado padrão em projetos-piloto e introduções graduais de novas tecnologias. Especialistas do setor ressaltaram que incidentes isolados não invalidam o hidrogênio, mas expõem um estágio ainda sensível de maturação operacional, que exige acompanhamento técnico rigoroso, treinamento específico e protocolos de resposta a emergências bem definidos.
O caso britânico reforça um ponto central do debate europeu: diferentemente do ônibus elétrico a bateria — já amplamente difundido — o hidrogênio avança de forma mais controlada, com forte peso da engenharia, da regulação e da gestão de riscos.
França aposta no hidrogênio como estratégia industrial
Na França, o hidrogênio aparece menos na operação cotidiana e mais como aposta industrial de médio e longo prazo. Em dezembro, a Ligier Automotive reforçou sua parceria tecnológica com a Bosch Engineering, voltada ao desenvolvimento e à integração de sistemas de propulsão por célula a combustível.
Nesse modelo, a Bosch atua como fornecedora dos componentes centrais do sistema de hidrogênio — como módulos de célula a combustível, eletrônica de potência, sistemas de controle e gerenciamento seguro do hidrogênio — enquanto a Ligier é responsável pelo projeto do veículo, integração do conjunto, arquitetura dos tanques e validação em ambiente real de operação. A estratégia busca amadurecer a engenharia da tecnologia antes de uma eventual expansão em escala.
A Ligier Automotive é uma empresa francesa responsável pelo projeto do veículo, integração do sistema de hidrogênio, layout do chassi e testes operacionais. Já a Bosch Engineering é uma divisão do grupo Bosch focada em engenharia avançada, fornecendo células a combustível, eletrônica de potência, software e sistemas de gestão do hidrogênio.
China força a escala com contratos de grande volume
Essa abordagem europeia contrasta fortemente com a estratégia adotada na China. Em Guangzhou, a prefeitura lançou em dezembro a maior licitação única de ônibus a hidrogênio do mundo, com cerca de 450 veículos. Diferentemente do modelo europeu, o poder público chinês assume o protagonismo ao criar escala imediata, absorvendo custos iniciais elevados para acelerar o aprendizado tecnológico e consolidar uma cadeia produtiva nacional.
Enquanto a Europa aposta na maturação tecnológica, projetos-piloto e segurança regulatória, a China utiliza contratos de grande volume como ferramenta direta de política industrial, forçando a curva de aprendizado e reduzindo custos por meio da escala.
Esse ambiente favorece a internacionalização da cadeia produtiva.
A HTWO Guangzhou, subsidiária do Hyundai Motor Group, e a Kaiwo Group assinaram contrato para fornecer 224 ônibus a hidrogênio ao sistema de transporte de Guangzhou, na China. Os veículos fazem parte de uma licitação que inclui 450 ônibus movidos a hidrogênio para a cidade, com os modelos da Hyundai/Kaiwo representando quase metade dessa encomenda.
Os novos ônibus, com 8,5 metros de comprimento, são equipados com um sistema de célula a combustível de 90 kW e têm autonomia de até 576 km com recarga rápida. Eles são projetados para operar em áreas urbanas, com piso baixo para facilitar o embarque de passageiros e com uma eficiência de 64% no sistema de células a combustível.
O contrato destaca a estratégia da China de acelerar a adoção do hidrogênio, impulsionando tanto a cadeia produtiva interna quanto a internacional, com fornecedores globais como Hyundai competindo por contratos de grande porte no país.
Outros países asiáticos avançam por caminhos distintos. Taiwan iniciou a implantação de estações de abastecimento de hidrogênio, reconhecendo que sem infraestrutura não há frota viável. Já a Índia segue priorizando a eletrificação por bateria: cidades como Hyderabad ampliaram a operação de ônibus elétricos, enquanto governos estaduais firmaram acordos para instalação de fábricas locais, conectando mobilidade urbana e política industrial.
Contrastes deixam lições
O contraste entre os continentes mostra que não existe uma transição única, mas múltiplas estratégias em disputa. A Europa consolida o ônibus elétrico a bateria como solução dominante, com foco em eficiência operacional e infraestrutura. A Ásia, liderada pela China, testa o hidrogênio em escala, assumindo riscos que operadores privados dificilmente aceitariam sozinhos.
Para o Brasil, a leitura é direta: mais do que escolher entre bateria ou hidrogênio, o desafio está em definir modelos institucionais, regulatórios e financeiros capazes de sustentar cada tecnologia. Sem escala, infraestrutura e contratos bem desenhados, a transição corre o risco de ficar restrita a anúncios — e não a ônibus rodando e passageiros transportados.


