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Experiências internacionais mostram que passes, subsídios estruturados e contratos por oferta reduzem carros e emissões, mas o Brasil esbarra em limitações sociais, jurídicas e políticas próprias

ALEXANDRE PELEGI

No debate brasileiro sobre transporte público, a política tarifária costuma ser apresentada como uma escolha binária: ou tarifa cheia, ou tarifa zero. Essa simplificação empobrece a discussão e ignora um campo intermediário amplo, já explorado em grandes cidades do mundo, onde a tarifa é tratada como ferramenta ativa de política pública — capaz de induzir mudança de comportamento, reduzir o uso do automóvel, aliviar o custo do deslocamento diário e contribuir diretamente para metas urbanas, sociais e ambientais.

O que as grandes cidades do mundo já fazem

Cidades como Paris, Londres, Berlim, Zurique e, mais recentemente, Riyadh adotaram passes mensais ou anuais integrados como eixo central de suas políticas de mobilidade. Nesses sistemas, o transporte público deixa de ser um custo variável e imprevisível e passa a funcionar como uma espécie de assinatura urbana: paga-se um valor fixo e o uso cotidiano se torna praticamente ilimitado. O efeito é conhecido: maior fidelização do usuário, redução do automóvel no dia a dia, previsibilidade de receita para o sistema e queda consistente das emissões.

No Brasil, porém, a simples importação desses modelos esbarra em obstáculos estruturais que não podem ser ignorados. É o que destaca o superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Luiz Carlos Néspoli, o Branco. Segundo ele, experiências de compra antecipada de viagens já foram testadas em São Paulo e não alcançaram a potencialidade inicialmente imaginada.

Perfil do usuário limita compra antecipada; cobrança por oferta traz racionalidade técnica e risco institucional

A principal razão está no perfil do usuário diário do transporte público. Grande parte não é atendida pelo vale-transporte e vive com renda restrita, muitas vezes insuficiente para antecipar despesas mensais. Em situações extremas, há trabalhadores que precisam recorrer a atividades informais ou bicos apenas para garantir a viagem de volta para casa. Nesse contexto, ainda que a tarifa antecipada seja mais barata no longo prazo, a exigência de pagamento prévio se torna um obstáculo concreto ao acesso.

Isso não invalida a discussão sobre a cobrança por oferta, modelo adotado em diversos países europeus, no qual o operador é remunerado pela disponibilidade do serviço, e não pelo número de passageiros transportados. Do ponto de vista técnico, trata-se de um sistema mais racional, que elimina o incentivo perverso de superlotação e protege o usuário frequente de variações tarifárias excessivas.

No Brasil, contudo, esse modelo esbarra em um problema estrutural: a fragilidade da segurança jurídica nos contratos de transporte público. Branco destaca que, nos sistemas baseados na tarifa por passageiro — especialmente quando há subsídios envolvidos —, mesmo diante de atrasos ou inadimplência do poder concedente, o operador tende a manter a prestação do serviço porque ainda detém parte da arrecadação tarifária, o que funciona como um mecanismo mínimo de amortecimento financeiro enquanto a controvérsia contratual é discutida. Nos contratos por oferta, por outro lado, a interrupção dos repasses pelo poder concedente, seja durante a própria gestão ou após mudança administrativa, expõe integralmente o operador ao risco financeiro, elevando a probabilidade de redução da oferta ou de descontinuidade do serviço.

Vale-transporte e a chave do financiamento híbrido

Essa fragilidade ajuda a explicar por que a discussão sobre modelos híbridos inevitavelmente passa pela forma como os recursos hoje já existentes são organizados, em especial o vale-transporte. Para Branco, o caminho mais realista não está na simples reprodução das experiências europeias, mas na reestruturação do financiamento do sistema, a partir da consolidação das contribuições patronais em fundos de mobilidade, combinadas com subsídios públicos e aportes federais.

Essa reorganização do financiamento abre espaço para uma meta objetiva e mensurável: reduzir em até 50% o custo real da tarifa para o usuário cotidiano. Segundo Branco, isso só é possível se o sistema passar a somar, de forma estruturada, recursos que hoje operam de maneira fragmentada. A contribuição patronal do vale-transporte, os subsídios já praticados e eventuais aportes federais poderiam sustentar tarifas diárias significativamente mais baixas, sem exigir antecipações incompatíveis com a realidade de renda da maior parte da população e sem romper completamente a relação econômica entre o serviço e quem o utiliza.

Tarifa também é política ambiental

A redução estrutural da tarifa também funciona como instrumento direto de política ambiental, ainda pouco explorado no Brasil. Ao tornar o transporte público mais acessível no uso cotidiano, tarifas mais baixas e previsíveis ampliam sua competitividade frente ao automóvel e à motocicleta, induzindo a migração modal de forma mais consistente do que medidas isoladas. A experiência internacional mostra que políticas tarifárias estruturadas contribuem para a redução do consumo de combustíveis fósseis, para a queda das emissões de gases de efeito estufa e para o alívio da pressão sobre o sistema viário, potencializando, inclusive, os ganhos ambientais associados à eletrificação de frotas e à modernização da infraestrutura.

E a Tarifa Zero?

Nesse contexto, a distinção em relação à Tarifa Zero se torna fundamental para qualificar o debate. Enquanto a Tarifa Zero transfere integralmente para a sociedade, via orçamento público, o custo de operação do sistema, a modicidade tarifária sustentada por subsídios preserva uma divisão de responsabilidades entre poder público e usuário. Esse arranjo tende a ser financeiramente mais resiliente, politicamente mais estável e tecnicamente mais aderente à realidade brasileira, como demonstram experiências internacionais, a exemplo da Grande Paris (região da Île-de-France; veja abaixo), onde contribuições patronais, subsídios públicos e pagamento do usuário coexistem como base estrutural do financiamento do transporte público. A Île-de-France Mobilités é uma autoridade pública regional, responsável por planejar, financiar e contratar os serviços de transporte, enquanto a operação é feita por empresas públicas e privadas.

O Brasil, portanto, não sofre por falta de diagnóstico nem de referências internacionais. O que falta é enfrentar suas próprias limitações políticas e institucionais para tratar a tarifa como instrumento estratégico de política urbana, social e ambiental. Enquanto o debate permanecer restrito ao reajuste anual ou à dicotomia entre tarifa cheia e tarifa zero, o país seguirá adiando uma escolha fundamental para o futuro de suas cidades.

Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes



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