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A previsão do tempo do passageiro é o novo termômetro da confiança no transporte coletivo


Para o especialista Gustavo Balieiro, a informação em tempo real redefine a qualidade percebida no transporte público e se torna o principal fator de fidelização do usuário

ALEXANDRE PELEGI

No debate sobre modernização do transporte coletivo, fala-se muito em frota nova, infraestrutura e tarifa zero. Mas, segundo o especialista em mobilidade Gustavo Balieiro, a revolução mais profunda pode estar “na palma da mão” do passageiro. Balieiro teve presença destacada em painel no Arena ANTP – 2025, além de ter participado em vários debates com outros painelistas e órgão públicos durante o evento, que aconteceu nos dias 28, 29 e 30 de outubro deste ano no Expor Center Transamérica, em São Paulo.

A pergunta ‘que horas o meu ônibus vai passar?’ virou o novo indicador de qualidade”, resume o mestre em transportes pela UFMG. “Hoje, a confiança do usuário se mede pela precisão da informação.”

Gustavo sabe o que diz. Ele atuou em sistemas de mobilidade em duas Copas do Mundo e duas Olimpíadas, como consultor do COI e da CONMEBOL. Hoje, sócio da Bus2, processa mais de 1 bilhão de registros de dados por mês entre informações de planejamento, AVL, SBE e outros formatos.

Conversamos com ele sobre o tema, leia os principais trechos a seguir:

 

Diário do Transporte — Gustavo, muito se fala em frota nova, tarifa zero e infraestrutura. Mas você costuma dizer que a revolução mais profunda no transporte coletivo pode estar “na palma da mão”. O que quer dizer com isso?

Gustavo Balieiro – O transporte público está vivendo uma mudança de percepção. Durante muito tempo, qualidade era sinônimo de ônibus novos e ar-condicionado. Hoje, a confiança do passageiro está muito mais ligada à previsibilidade — saber se o ônibus vai realmente chegar e, principalmente, quando ele vai chegar.

A pergunta “que horas o meu ônibus vai passar?” virou o novo indicador de qualidade. A confiabilidade da informação se tornou a moeda de troca entre o sistema e o usuário.

 

Diário do Transporte — Essa nova percepção vem da comparação com outros modais, certo?

Gustavo Balieiro – Exatamente. Quando os aplicativos de transporte individual como Uber e 99 chegaram, eles não venderam apenas uma corrida — venderam previsibilidade. O usuário passou a acompanhar o carro no mapa, saber o nome do motorista e receber um ETA (tempo estimado de chegada) com precisão de minutos.
Isso mudou tudo. O “padrão Uber” criou uma nova régua para todos os serviços de mobilidade. De repente, a imprevisibilidade crônica do transporte coletivo deixou de ser vista como inevitável e passou a ser um defeito grave. O passageiro entendeu que dá para ter previsibilidade — basta vontade e gestão de dados.

 

Diário do Transporte — E o que a psicologia do transporte nos diz sobre essa previsibilidade?

Gustavo Balieiro – Os estudos são unânimes: o tempo de espera percebido é mais estressante que o tempo real. Um passageiro que sabe que o ônibus chegará em 10 minutos se sente muito mais tranquilo do que aquele que espera cinco minutos sem saber se o veículo já passou ou ainda vai demorar meia hora.
A ansiedade de não saber mina a confiança. E é justamente isso que as informações em tempo real corrigem — elas reduzem o “tempo emocional” de espera.

 

Diário do Transporte — Como os sistemas podem fornecer essa informação com precisão?

Gustavo Balieiro – Tudo começa pelos dados. A base técnica do sistema é o GTFS (General Transit Feed Specification). O GTFS estático é o plano de voo — descreve as rotas, paradas e horários planejados. Se ele estiver errado, todo o resto desanda.

Depois vem o GTFS-RT (Real-Time), que adiciona a camada da realidade: a posição real do ônibus via GPS. O ETA que o passageiro vê no aplicativo é o resultado da fusão dessas duas camadas. Se uma delas falha — por exemplo, um horário desatualizado ou um GPS fora de rota — a previsão se torna uma ficção. É inadmissível sistemas com menos de 90% dos veículos em operação sem a real informação do que fazem para o passageiro.

 

Diário do Transporte — Ou seja, o dado precisa ser bom para a IA ser boa.

Gustavo Balieiro – Exatamente. Não existe inteligência artificial que salve dado ruim. Se o GTFS estático não reflete as rotas reais, ou se o GPS é impreciso, o sistema entrega uma mentira. E nada quebra mais a confiança do passageiro do que uma informação errada.
O passageiro até perdoa o atraso — mas não perdoa o erro de informação. Um veículo em linha incorreta faz o usuário se sentir enganado.

 

Diário do Transporte — Como o histórico de dados pode ajudar a corrigir esses problemas?

Gustavo Balieiro – Se um ônibus perde velocidade todos os dias, no mesmo trecho, às 18h, isso deixou de ser um “atraso”. Virou um comportamento padrão. Um bom sistema de dados usa esse histórico para calibrar o GTFS estático, ajustando o tempo programado conforme a realidade.
Assim, o “plano” já nasce mais realista — e o tempo real (GTFS-RT) fica livre para tratar o que é realmente inesperado: acidentes, chuvas, manifestações. Isso aumenta drasticamente a precisão do ETA.

 

Diário do Transporte — Você costuma dizer que investir em dados é investir em satisfação do cliente. Pode explicar?

Gustavo Balieiro – Sim. Ainda há uma visão equivocada de que investir em dados é gasto técnico, de bastidor. Mas é exatamente o contrário: é investimento direto na experiência do passageiro.
Um sistema de transporte que informa com precisão o tempo de chegada é percebido como mais confiável, mesmo sem mudar a frota.
E confiança é o ativo mais valioso que um operador pode ter. Um assento quebrado é consertado em um dia. Mas uma confiança quebrada por dados errados pode levar meses para se recuperar.

 

Diário do Transporte — E o papel das novas ferramentas nesse processo?

Gustavo Balieiro – Hoje existem plataformas, como a Bus2, que conseguem calibrar automaticamente a previsão com base em bilhões de registros de GPS e histórico de operação. Elas medem a precisão do ETA, identificam padrões de lentidão e retroalimentam o planejamento. Estamos tratando de volumes imensos de dados — na casa de um bilhão de registros por mês. E é justamente essa escala que permite transformar o dado bruto em inteligência prática, voltada para o usuário final.

Mas nada disso tira a responsabilidade do operador que continua com a necessidade de manter o planejamento adequado e veículos com a escala correta.

 

Diário do Transporte — Para fechar: o que os gestores públicos e operadores deveriam entender a partir dessa discussão?

Gustavo Balieiro – Que informação é infraestrutura. Assim como um corredor exclusivo melhora o desempenho físico do ônibus, dados bem tratados melhoram o desempenho percebido pelo usuário.

O passageiro não quer apenas um ônibus novo; ele quer previsibilidade. E previsibilidade nasce de dados confiáveis. A modernização do transporte coletivo não está só nas rodas — está na nuvem.

 

Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes



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