Publicado em: 30 de novembro de 2024
Revista ‘Sou + Ônibus’ conversou com Olimpio Alvares, engenheiro mecânico especializado em emissões e transporte sustentável e um dos autores de estudo da ANTP sobre o tema
REVISTA SOU + ÔNIBUS
O aquecimento global já bate à nossa porta e a poluição urbana é uma velha conhecida da população. Com isso, a necessidade por modelos de propulsão limpa é um imperativo no deslocamento das pessoas. É tempo de transição energética.
Descarbonização é um termo que tem sido usado em maior volume nos últimos anos pela imprensa ou em determinados setores econômicos em todo o mundo. Sabemos que é essencial praticarmos mais sobre esse assunto do que falarmos, afinal, a poluição gerada pela indústria, pelo comércio e pelo transporte pode nos levar (ou já nos levou) ao caos ambiental.
No setor dos transportes, suas emissões poluentes têm contribuído com esse aspecto, sendo os veículos automotores sobre pneus responsáveis por uma boa parcela dos gases tóxicos expelidos pelos escapamentos, afetando diretamente a saúde pública. E, dentro desse contexto sobre rodas, os ônibus são, muitas vezes, indicados como vilões na esfera urbana (erroneamente) quando comparados com outros modais que poluem ainda mais.
É de conhecimento que no transporte coletivo nas cidades, a tecnologia veicular é atualizada conforme os padrões estabelecidos por norma governamental, que implica a adoção de motores que emitem menos gases (temos uma frota com motorização Euro V, em sua esmagadora maioria, e, agora, com os propulsores Euro VI, com baixíssimos índices de emissões poluentes). Dessa forma, os ônibus não podem ser comparados a poluidores natos, mas, sim, como agentes que podem promover um transporte sustentável.
Aliás, por intermédio de tecnologias modernas, que podem usar diversas fontes energéticas limpas, o ônibus tem grande potencial para se alcançar uma mobilidade livre dessas emissões, principalmente do material particulado e do óxido de nitrogênio, dois grandes poluentes que impactam negativamente a vida das pessoas. Em uma combinação entre propulsão verde (eletricidade e biocombustíveis), racionalização dos serviços (corredores e sistemas de BRT) e otimização operacional, o modal traz grandes benefícios a todos.
Nessa linha de raciocínio, a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) lançou recentemente uma cartilha chamada de Rotas Tecnológicas de Descarbonização do Transporte Coletivo, com o intuito de provocar e orientar as mudanças necessárias quanto ao investimento em trações limpas e sustentáveis.
A revista Sou + Ônibus, dando prosseguimento aos seus artigos sobre combustíveis e modelos de trações para ônibus de hoje e do futuro, conversou com Olimpio Alvares, engenheiro mecânico especializado em emissões e transporte sustentável e um dos autores desse estudo, a respeito do conteúdo e de
como promover um dos itens do conceito ESG, no caso, Environment (Ambiental), com uma abordagem técnica, instrutiva e incentivadora às diversas modalidades tecnológicas que o Brasil pode oferecer.
SOU + ÔNIBUS – O mundo vive um processo para alcançar a descarbonização em diversos setores da economia, entre eles o transporte. Em sua opinião, como os países têm encarado esse contexto? E no caso do transporte, o que tem sido feito a respeito?
Olimpio Alvares – Em muitos países, diversos programas regulamentam há mais de 40 anos o controle das emissões de veículos, o que implicou o aperfeiçoamento da tecnologia veicular e da qualidade dos combustíveis, com vistas à melhoria da qualidade do ar e da vida nas cidades, afetadas pela
contaminação atmosférica. A preocupação com o combate ao aquecimento global, causado – entre outros fatores – pelas emissões dos transportes, é, porém, um fenômeno mais recente e que está revolucionando o setor há cerca de pouco mais de uma década.
As queimadas, especialmente na região amazônica, também são objeto de preocupação em nível global; não obstante, no âmbito nacional, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), os transportes respondem por cerca de 8%[1] do total nacional
das emissões de gases de efeito estufa (GEEs), representando um importante desafio, com compromisso de metas para redução das “emissões climáticas” oriundas da queima de combustíveis fósseis.
As emissões do transporte crescem mais rápido do que as de outros setores, devido ao aumento da taxa de motorização da população nos países em desenvolvimento; assim, o desencadeamento de políticas públicas de mitigação de emissões e descarbonização dos transportes é fundamental, e já conta
com o engajamento cultural e formal de governos nacionais, estados e municípios, assim como da sociedade civil em todo mundo – isso é parte do que passamos a conhecer como a “Ética do Carbono”, que abrange todos os setores da economia.
SOU + ÔNIBUS – E qual é o papel do Brasil para contribuir com a redução das emissões poluentes? Em se tratando de transporte, é possível entender que o país pode liderar essa corrida pela propulsão limpa? Como?
Olimpio Alvares – Em 2021, cerca de 49% das emissões nacionais vinham do setor de florestas, segundo o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG). Para enfrentar esse desafio, o Brasil deve desenvolver políticas e ações objetivas voltadas para o combate ao desmatamento ilegal, reforçando a fiscalização ambiental e aumentando a eficiência dos mecanismos de monitoramento por satélite. A restauração florestal e de áreas degradadas também terá um papel essencial via sequestro de carbono. Outra ação decisiva nesse sentido são as práticas agrícolas sustentáveis, com adoção da agricultura de baixo carbono, além da melhoria da produtividade e da eficiência de áreas já desmatadas, o que evita o desmatamento de áreas de florestas. Políticas e mecanismos que valorizem economicamente a conservação das florestas, como créditos de carbono ou incentivos financeiros para comunidades locais e proprietários de terra que mantêm a vegetação nativa preservada, também podem fomentar práticas mais sustentáveis, reduzindo as emissões de CO2. A promoção de cadeias produtivas que respeitem os limites ambientais e utilizem áreas já desmatadas de forma eficiente, como a produção de carne, soja e outros produtos agrícolas de forma sustentável, também pode reduzir a pressão sobre novas áreas florestais.
Para que seja possível obter sucesso nessas complexas atividades, que demandam recursos gigantescos, é essencial que os países desenvolvidos cumpram seus compromissos firmados em 2015 na 21ª Conferência do Clima (COP 21), em Paris, e, entre outras ações compromissadas – como a sistemática transferência de tecnologia de ponta de manejo florestal –, repassem retroativa e anualmente os US$ 100 bilhões aos países em desenvolvimento, o que, até o presente, lamentavelmente não se cumpriu.
Por outro lado, no que se refere ao transporte rodoviário, muito antes dessa onda global das mudanças climáticas, o Brasil já havia se consolidado como líder mundial da descarbonização. Vejamos:
Programa Nacional do Álcool (Proálcool) – desde a década de 1970, é o maior programa do mundo de combustível renovável automotivo.
Uso do gás natural em veículos – desde 1990.
Novo Mercado de Gás – criado em 2019 para incentivo ao uso do gás natural, inclusive no setor de transportes.
Adição de biodiesel no diesel – desde 2005, o teor de biodiesel vem aumentando.
Política Nacional de Bicombustíveis (Renovabio) – desde 2017, o Brasil trabalha para incrementar a pegada de biocombustíveis nos transportes e incentivar sua produção.
Etiquetagem veicular/Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto)/Rota 2030/Mover – desde 2008 promovendo a eficiência veicular (redução do consumo e CO2).
Combustível do Futuro – reúne diversos programas que tratam do uso automotivo de etanol, biodiesel, gás natural, biometano, diesel verde (HVO), SAF (combustível sustentável de aviação) e hidrogênio verde.
Mas não é porque o Brasil excede há tempos nas iniciativas de descarbonização que o país deve ignorar vulnerabilidades, que podem e devem ser atacadas por políticas públicas certeiras. É o caso da dependência acentuada do transporte rodoviário (de passageiros e carga) ao óleo diesel fóssil; o alto consumo do diesel no Brasil corresponde a maiores emissões de CO2 entre todos os tipos de combustível usados nos transportes.
O gráfico a seguir ilustra claramente essa disparidade. Este é, não por acaso, o motivo central da recente publicação da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), intitulada “Rotas tecnológicas de descarbonização do transporte coletivo no Brasil”, cujo conteúdo e elaboração tive a satisfação de coordenar, sob a supervisão do Eng. Luiz Carlos Mantovani Néspoli (o Branco).
SOU + ÔNIBUS – O Brasil se destaca perante outros países pela variedade de fontes energéticas capazes de mitigar os efeitos da poluição oriunda dos sistemas de transporte. O que falta para podermos ser reconhecidos nesse aspecto e como vamos lidar com essa multiplicidade de opções limpas?
Olimpio Alvares – O Brasil é, há décadas, reconhecido mundialmente como a “Meca dos Biocombustíveis”. Não há, em todo o mundo, outro país que faça jus a esse título. Abundância de água, sol e terra fértil disponível para cultivo de insumos para produção de biocombustíveis – sem interferir na produção de alimentos –, padrões macroclimáticos riquíssimos e diversificados (terroir) proporcionados pelas características continentais do país, força vigorosa de trabalho no setor agrícola, pesquisa avançada e tecnologia recordista em produtividade de diversas espécies, indústria especializada em motores veiculares dedicados, entre outros aspectos culturais, são fatores que sempre estiveram e por muito tempo ainda estarão presentes na sociedade brasileira.
SOU + ÔNIBUS – A participação governamental é fundamental para alcançarmos sucesso no processo de descarbonização dos transportes. Em sua visão, como os governos das diversas esferas públicas devem e deverão atuar?
Olimpio Alvares – É mais fácil iniciarmos essa análise e as recomendações cautelares pelos ônibus urbanos. O caso dos demais nichos veiculares é mais complexo, e o volume de recursos necessários e instituições envolvidas pode ser muito maior do que no caso dos ônibus urbanos. Uma vez sistematizadas as políticas gerais para a descarbonização dos ônibus, pode-se passar para os próximos desafios. As políticas de descarbonização não podem prescindir de uma série de diretrizes mínimas essenciais. A participação de governos, em especial do governo federal, no permanente fomento e suporte material à aquisição de ônibus alternativos novos, de insumos energéticos renováveis e infraestrutura adequada de abastecimento, é essencial para que haja pleno sucesso na substituição por alternativas sustentáveis.
É também fundamental que exista liderança, participação ativa e coordenação do poder público local, primeiro e último responsável pelos sistemas de transporte coletivo urbano. O poder público é o agente institucional garantidor dos recursos para alavancagem da substituição por frotas/energias alternativas, por vezes mais caras que o diesel convencional – especialmente no início dos programas de substituição.
Mentor e protagonista dessa mudança de paradigma, o poder público identificará com extrema cautela as fontes internas e externas de recursos financeiros, e proporá modelos de negócio inovadores para cobertura dos custos incrementais iniciais, viabilizando os negócios e o novo modo de operação dos sistemas. Esse passo é muito importante, especialmente no caso dos ônibus elétricos, que demandam investimentos iniciais muitas vezes superiores a todos os concorrentes hoje atuando no mercado de alternativas. Nesse caso, os gestores de transporte e agentes econômicos e financeiros da administração devem buscar apoio técnico na formatação dos projetos locais e internacionais de captação financeira para aquisição dos veículos, sistemas de abastecimento e adaptação/instalação de infraestrutura de garagens.
A segurança jurídica de contratos vigentes baseados nas condições típicas da tecnologia diesel, por motivos óbvios, deve ser respeitada pelos gestores do transporte público. Assim, a transição sustentável, preferencialmente gradual e planejada em seus mínimos detalhes, dará origem a aditivos contratuais
específicos financeiramente equilibrados, visando à incorporação gradativa de frotas alternativas sustentáveis em substituição aos veículos a diesel convencionais mais velhos.
Os nichos prioritários de tipos de veículos e a gradualidade de implementação dos ônibus de baixas emissões e das tecnologias e dos insumos energéticos adequados a cada aplicação devem ser claramente definidos em um meticuloso plano de substituição dos ônibus a diesel por alternativas sustentáveis.
Tal diretriz parece estabelecer o óbvio; entretanto, no cenário atual brasileiro, pode-se observar atropelos em certos casos, que, por questões eleitorais, beiram o caos na execução, podendo gerar litígios, críticas, descontentamento por promessas não cumpridas e danos à imagem do poder concedente – e,
se não bastasse, aos operadores do sistema.
Marco regulatório: é essencial que a transição das frotas existentes seja realizada conforme critérios e metas de curto, médio e longo prazos, preferencialmente regulamentados, e que as escolhas sejam tecnológicas e energeticamente neutras. Isso significa que as rotas de descarbonização serão selecionadas mediante objetivo e justo concurso das diversas alternativas existentes no mercado, que serão criteriosamente avaliadas e pontuadas
segundo suas vantagens e desvantagens, relativamente aos três pilares da sustentabilidade: ambiental, econômico e social.
As políticas públicas de substituição de frotas devem priorizar a inclusão e o engajamento da experiente e robusta indústria brasileira de ônibus e da cadeia produtiva de ônibus e insumos energéticos renováveis. Essa precaução pode garantir não somente as esperadas vantagens econômicas e sociais para o país, mas também maior segurança operacional ao sistema, dada a proximidade e a confiança histórica entre produtores e clientes finais.
SOU + ÔNIBUS – Por aqui, muito se fala em eletrificação dos veículos, principalmente os ônibus urbanos. Contudo, esse modal pode adotar outras formas de tração limpa, capazes de não comprometer sua eficiência e o caráter da sustentabilidade, correto?
Formadores de opinião, especialistas e algumas empresas insistem que a eletricidade é a única forma de reduzir a poluição. Mas, no radar das opções, há
outros energéticos que podem contribuir com um ambiente mais limpo. Fale mais sobre essas possibilidades técnicas e econômicas, por favor.
Olimpio Alvares – No decorrer da elaboração dessa publicação da ANTP sobre o processo de descarbonização de ônibus no Brasil, tivemos a oportunidade de realizar 20 entrevistas com personalidades de larga experiência nacional e internacional nos setores de transporte urbano de passageiros, planejamento industrial, ciência de materiais, energia aplicada a transportes, combustíveis e energias alternativas, e geopolítica da indústria automotiva.
Até mesmo entre os representantes de fabricantes e importadores de ônibus elétricos, tivemos a oportunidade de conhecer opiniões – e suas razões – que conflitam frontalmente com a premissa da sua pergunta: “O futuro do transporte público coletivo urbano no Brasil não é elétrico, mas eclético”.
A escolha isenta e educada de tecnologias que tenham desempenho econômico, ambiental e operacional mais eficientes em cada tipo de aplicação dependerá sempre de estudos objetivos individualizados que considerem todas as circunstâncias específicas de cada caso. A ferramenta
mais adequada para realizar essas escolhas é o estudo de TCO – Total Cost of Ownership (Custo Total de Propriedade). Isso significa que, a depender dos parâmetros locais, operacionais e temporais, a melhor performance indicada pelo estudo poderá ser ora os ônibus elétricos, ora os movidos a biometano, ora os diesel Euro 6 equipados com filtros e movidos a HVO/biodiesel, ora os híbridos/HVO/biodiesel, ora os trólebus dotados de sistema in-motion
charging. É por essa razão que se observam, na prática de diversos países, decisões pela escolha de frotas novas inteiras na Estônia, na França, na Espanha e nos Estados Unidos movidas a biometano, híbridos (aumentando inesperadamente suas vendas nos últimos anos), Euro 6 com HVO na Finlândia, trólebus sendo aplicados na Itália e na Suíça em corredores de áreas centrais, e até mesmo ônibus a hidrogênio em certas aplicações na Coreia do Sul, no Japão e nos Estados Unidos (apesar de seu alto custo total de propriedade), além do elétrico puro a bateria.
Nada pode ser pré-determinado sem que seja feito o minucioso estudo de TCO com dados reais operacionais e de mercado. Afinal, a responsabilidade com os recursos públicos, especialmente no Brasil, onde há falta crônica de recursos no setor público, deve obrigatoriamente estar no centro das decisões.
Do ponto de vista do meio ambiente e do clima, todas as alternativas disponíveis atualmente no mercado brasileiro apresentam características muito próximas nos diferentes parâmetros ambientais comparados.
(Entrevista publicada na Edição nº 47, ano 2024, da Revista Sou + Ônibus, da Fetpesp – Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo)