Publicado em: 29 de maio de 2025
Disputa acirrada entre empresas consolidadas e startups disruptivas exige arbitragem da ANTT para definir futuro do setor
ALEXANDRE PELEGI
O cenário do transporte rodoviário interestadual de passageiros no Brasil transformou-se em um verdadeiro campo de batalha. De um lado, empresas tradicionais defendem seu legado, argumentando que décadas de experiência são cruciais para garantir serviços seguros e de qualidade. Do outro, uma nova geração de empresas disruptivas avança agressivamente. Nomes como FlixBus, com seu modelo de baixo custo; Buser, que atua como vitrine digital conectando passageiros a frotistas menores; e BlaBlaCar, impulsionando caronas pagas mais econômicas, estão conquistando fatias de mercado. Esses novos competidores utilizam tecnologia de ponta, marketing digital massivo e preços altamente competitivos para desafiar o status quo.
Essa disputa não é apenas concorrência de mercado, mas configura uma verdadeira guerra de narrativas, onde os inovadores buscam reescrever as regras do setor a seu favor, utilizando o discurso da “democratização” para ganhar apoio. Neste contexto, a capacidade de adaptação estratégica tornou-se questão de sobrevivência. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) enfrenta o desafio monumental de mediar o conflito e estabelecer um campo de jogo equilibrado, onde todas as empresas cumpram rigorosamente suas obrigações e operem sob as mesmas regras claras e justas. O futuro do transporte rodoviário no país depende criticamente dessa arbitragem.
Para entender melhor os meandros legais e regulatórios dessa intensa disputa, o Diário do Transporte conversou mais uma vez com o advogado e especialista Ilo Löbel da Luz.
ENTREVISTA:
Diário do Transporte: O cenário do transporte rodoviário de passageiros no Brasil tem sido descrito como uma “Guerra das Estradas”. Como você vê essa metáfora e qual a dinâmica principal desse confronto?
Ilo Löbel da Luz: A metáfora “Guerra das Estradas” é bastante apropriada. O transporte rodoviário de passageiros no Brasil vive hoje um confronto direto entre a tradição e a inovação. De um lado, estão os operadores tradicionais, que valorizam sua experiência, a segurança e o cumprimento das regras da ANTT, defendendo o modelo atual. Do outro lado, novas empresas surgem com base em tecnologia, marketing agressivo e preços baixos, questionando as regulações existentes e buscando maior liberdade para operar. A principal dinâmica desse confronto se manifesta em disputas judiciais, na acirrada concorrência por passageiros – muitas vezes focada em preços – e na forte pressão por mudanças nas leis e normas do setor. O futuro do transporte rodoviário no país está sendo moldado diretamente por este embate.
Diário do Transporte: Quais são os principais “generais” ou, no caso, os nomes e modelos de negócio que representam essa “avalanche da inovação”?
Ilo Löbel da Luz: Novos entrantes no setor de transporte rodoviário, como a FLIXBUS, estão reconfigurando o mercado. Esta adota um modelo de baixo custo baseado em uma joint venture contratual – uma parceria entre transportadoras e sua plataforma tecnológica – para comercializar passagens de empresas autorizatárias. Tal arranjo, contudo, suscita debates sobre a efetiva responsabilização perante os usuários, que, em geral, são vulneráveis, bem como riscos a interesses difusos. De forma similar, a BUSER opera como uma vitrine digital, conectando passageiros a frotistas menores para serviços de fretamento em circuito aberto, popularizado como ‘fretamento colaborativo’. Paralelamente, a BLABLACAR facilita o transporte rodoviário por meio de ‘caronas pagas’, na maioria das vezes em trajetos que se sobrepõem aos das linhas regulares, porém sem a devida autorização da ANTT. Estes novos competidores vêm conquistando fatias de mercado progressivamente, sob a bandeira de um ‘mercado mais aberto e democrático’. Para tanto, empregam tecnologia de ponta, marketing digital massivo e preços altamente competitivos. Com isso, desafiam não apenas o status quo das empresas estabelecidas, mas também a aplicabilidade, a fiscalização e, em última instância, a própria legitimidade do arcabouço regulatório da ANTT.
Diário do Transporte: E como as empresas tradicionais reagem a essa pressão? Quais os dilemas que enfrentam?
Ilo Löbel da Luz: Para as companhias tradicionais, a pressão é constante. De um lado, a necessidade de modernizar suas operações; de outro, o imperativo de preservar uma confiança arduamente conquistada. Esse delicado equilíbrio é desafiado por concorrentes que, frequentemente, se destacam pela agilidade, por táticas inovadoras e, notadamente, pela deliberada escolha de operar sob um regime regulatório significativamente mais brando, muitas vezes aquém das obrigações que efetivamente lhes caberiam.
Diário do Transporte: Por outro lado, o que os inovadores buscam com essa agressividade de mercado?
Ilo Löbel da Luz: Inovadores pressionam por menos regulação para acelerar sua expansão. Eles veem as normas de hoje como barreiras à competição.
Diário do Transporte: O senhor mencionou que isso transcende a simples concorrência. Poderia explicar melhor essa “guerra de narrativas”?
Ilo Löbel da Luz: Com certeza. É uma verdadeira guerra de narrativas onde os inovadores buscam reescrever as regras do setor a seu favor. Eles utilizam discursos como ‘democratização do transporte’ e ‘disrupção digital’ com dois objetivos principais: primeiro, minar a imagem e a resistência das empresas tradicionais; e segundo, de conquistar o apoio da opinião pública e influenciar órgãos reguladores, o legislativo e o judiciário para obter um tratamento regulatório mais favorável, ou mesmo a desregulamentação de segmentos do setor. No fundo, quem vencer essa batalha de versões terá mais força para moldar as futuras leis e o próprio entendimento sobre o transporte de passageiros.
Diário do Transporte: Neste cenário complexo, com a entrada até de players internacionais, qual se tornou o fator chave para as empresas?
Ilo Löbel da Luz: Neste cenário desafiador, com forte concorrência de empresas internacionais e plataformas digitais, o fator chave é a rápida capacidade de adaptação estratégica e operacional. Para as empresas, isso significa ter agilidade para rever seus modelos de negócio, incorporar novas tecnologias de forma eficiente e, principalmente, focar em atender às novas demandas e expectativas dos clientes. Adaptar-se continuamente tornou-se essencial para a sobrevivência e a competitividade no setor.
Diário do Transporte: E no centro desse “furacão”, está a ANTT. Qual o papel e o desafio da Agência neste momento?
Ilo Löbel da Luz: O papel da ANTT, no centro deste ‘furacão’, é monumental: atuar como mediadora do conflito entre os diferentes modelos de negócio e, principalmente, estabelecer regras claras, justas e que garantam condições de igualdade para todos os operadores. A Agência deve assegurar que todas as empresas cumpram rigorosamente suas obrigações. O maior desafio consiste em equilibrar o necessário incentivo à inovação e à livre concorrência com a manutenção da segurança, da qualidade e da continuidade dos serviços essenciais prestados aos usuários.
Diário do Transporte: Considerando tudo isso, qual a sua visão sobre o futuro do transporte rodoviário no Brasil e a importância da atuação da ANTT?
Ilo Löbel da Luz: O futuro do transporte rodoviário no Brasil depende crucialmente da atuação da ANTT em arbitrar os atuais conflitos e modernizar o setor. Se a Agência conseguir estabelecer regras claras, justas e aplicadas igualmente a todos os modelos de negócio, podemos esperar um setor mais inovador, competitivo e com melhores serviços para os passageiros. Caso contrário, o setor pode enfrentar instabilidade e precarização. Portanto, a forma como a ANTT conduzirá esse processo não é apenas importante, é decisiva para a evolução do transporte rodoviário no país.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes