Publicado em: 24 de junho de 2025
Para advogado Marcelo Brasiel, setor está em uma fase delicada, com queda de demanda e faturamento, e judicialização como única via para autorização de novos mercados
ALEXANDRE PELEGI
O transporte rodoviário interestadual regular de passageiros, um pilar fundamental da mobilidade no Brasil, atravessa uma fase de incertezas e desafios sem precedentes. Embora o anuário estatístico da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) de 2024 possa sugerir um cenário positivo, a realidade operacional e financeira do setor pinta um quadro bem diferente. Para lançar luz sobre essa complexa situação e entender as razões por trás da paralisia regulatória que assola o segmento, o Diário do Transporte conversou com Marcelo Brasiel, advogado de empresas e especialista em ANTT. Nesta entrevista, ele detalha, à luz dos dados estatísticos revelados pelo Anuário de 2024 divulgado pela autarquia federal, como a inércia da agência reguladora, a falta de abertura de novos mercados e a crescente judicialização têm impactado drasticamente a oferta de serviços, a demanda de passageiros e a saúde financeira das empresas, alertando para um sistema esvaziado e sem capacidade de atender à população.
O Diário do Transporte trouxe de forma exclusiva uma análise do recente anuário estatístico da gerenciadora federal de transportes, concluído neste mês de junho de 2025. Veja ao final da entrevista o link da matéria.
Diário do Transporte: O transporte rodoviário interestadual regular de passageiros tem sido pauta constante. O anuário estatístico da ANTT de 2024, divulgado recentemente, tentou pintar um cenário positivo, mas qual é a sua análise crítica da realidade atual do setor?
Marcelo Brasiel: A realidade é que o setor atravessa uma fase extremamente delicada. Embora os dados oficiais possam tentar sugerir o contrário, desde a entrada em vigor da Resolução nº 6.033/2023, o transporte rodoviário regular de passageiros se encontra em um estado de estagnação. A grande promessa do novo marco regulatório era a abertura de mercado por meio das “janelas de abertura”, que simplesmente não se concretizou. Nenhuma janela foi efetivamente realizada até hoje, o que na prática impede a entrada de novos operadores, a criação de novas linhas e a expansão do serviço.
Diário do Transporte: E essa inércia da ANTT em relação às janelas de abertura, pode ser atribuída apenas àquela liminar judicial que suspendeu a janela extraordinária?
Marcelo Brasiel: De forma alguma. É crucial registrar que, embora tenha havido uma liminar judicial suspendendo a realização da janela extraordinária (prevista para entre 17 de janeiro e 30 de abril de 2025), essa suspensão foi derrubada há mais de dois meses. Desde então, a ANTT não retomou o processo de onde parou, tampouco ofereceu um cronograma ou qualquer justificativa formal para a paralisação. Mais grave ainda, a própria janela extraordinária já deveria ter sido realizada desde julho de 2024, conforme previsto no artigo 232 da Resolução 6.033/2023. No entanto, a ANTT prorrogou o prazo por mais de uma vez, sem qualquer motivação publicada. Em outras palavras, não se pode mais atribuir exclusivamente ao Judiciário a inércia quanto à abertura de mercado; a omissão hoje é puramente regulatória.
Diário do Transporte: Diante desse cenário de bloqueio administrativo, como as empresas têm conseguido, então, acessar novos mercados?
Marcelo Brasiel: Infelizmente, essa é uma das situações mais preocupantes. Atualmente, a única forma de uma empresa acessar novos mercados tem sido por via judicial. Todas as autorizações de novos mercados concedidas desde a vigência do novo marco regulatório decorreram de decisões judiciais. A via administrativa permanece completamente bloqueada, o que compromete os próprios fundamentos da norma, que são a transparência, a isonomia, a eficiência e a abertura.
Diário do Transporte: E qual o impacto dessa paralisia nos dados operacionais do setor? Houve uma retração na oferta e demanda?
Marcelo Brasiel: Sem dúvida. Os dados operacionais são alarmantes. Houve uma queda de quase 6% na demanda de passageiros em 2024. O número de linhas ativas despencou drasticamente: eram mais de 4.500 antes da nova regulamentação, e agora restam apenas cerca de 2.000. A cobertura territorial continua bastante limitada; apenas 2.066 municípios foram atendidos pelo serviço regular em 2024, o que representa menos de 40% da malha em estados como São Paulo e Minas Gerais. No mesmo período, observamos também uma queda no número de motoristas habilitados, o que reforça o diagnóstico de desestímulo à operação e à renovação do setor.
Diário do Transporte: E financeiramente, como o setor tem se comportado diante dessa crise operacional e regulatória?
Marcelo Brasiel: Do ponto de vista financeiro, a situação também é preocupante. O faturamento nominal do setor caiu 1,93% em relação a 2023. No entanto, quando ajustamos esse valor pela inflação, considerando o IPCA de 4,62%, o tombo real chega a mais de 6%, representando uma perda de aproximadamente R$ 441 milhões em poder de compra. E isso ocorre mesmo com o aumento das tarifas médias, especialmente nas classes de maior conforto, o que indica que a elevação de preços não foi suficiente para compensar a evasão da demanda. Além disso, o índice de aproveitamento de assentos, que mede a ocupação dos ônibus, permanece abaixo do ideal, com média de 59,7% em 2024, ainda distante dos 66% registrados em 2022.
Diário do Transporte: Diante desse cenário tão desafiador, quais medidas o senhor considera urgentes para que o setor possa retomar sua função de forma eficiente e sustentável?
Marcelo Brasiel: Há algumas medidas que são inadiáveis. Primeiro, a abertura imediata das janelas de mercado previstas na Resolução 6.033/2023, com um cronograma transparente e critérios objetivos. Em segundo lugar, é fundamental um combate efetivo ao transporte clandestino, que hoje opera com pouca fiscalização e concorre de forma desleal com o serviço regular. Precisamos também de uma modernização da política tarifária, com incentivos para rotas de baixa atratividade econômica, garantindo a capilaridade do serviço. E, por fim, é crucial que haja estabilidade e coerência na aplicação da regulação, para que não reste ao empreendedor senão a alternativa do litígio judicial.
Diário do Transporte: Para encerrar, qual é o maior risco se essa postura de inércia por parte da agência reguladora persistir?
Marcelo Brasiel: O risco é muito claro e grave. O transporte regular interestadual de passageiros permanece em uma zona de paralisia regulatória, retração econômica e redução de capilaridade. Se não houver uma mudança de postura por parte da ANTT e um plano claro de execução do que já foi prometido em norma, o risco é termos um sistema altamente regulado, mas completamente esvaziado, sem atratividade para o setor privado e, o mais importante, sem capacidade de atender a população de forma ampla, segura e acessível. É um futuro sombrio para a mobilidade de passageiros no país.
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Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes